A literatura nazista na América

Roberto Bolaño foi um escritor chileno que morreu em 2003, aos 50 anos. Entre outros títulos, é autor de A literatura nazista na América, lançado em 1996 em língua espanhola e publicado no ano passado aqui no Brasil em português. Por indicação de amigos, reforçada pela primeira posição numa lista dos melhores de 2019 de uma revista especializada, dediquei-me a essa leitura. O livro é uma espécie de uma curta enciclopédia composta por pequenas biografias ficcionais de escritoras e escritores do continente americano abrangendo principalmente autores que atuaram no século XX, mas também no século seguinte. Sabemos, por exemplo, que Zach Sodenstern, escritor norte-americano de ficção científica de grande sucesso, morreu em 2021 em Los Angeles, o que nos faz antever que o livro de Bolaño ainda está por ser escrito num futuro próximo.

Não há nenhuma exceção; em comum entre os biografados o fato de que todos eles em algum momento de suas vidas flertaram e/ou dedicaram-se ao nazismo, por meio de suas obras ou pelo envolvimento direto em organizações políticas reacionárias locais. Seja com referências em seus romances e poemas, seja pela criação de revistas literárias, como é o caso de “El Cuarto Reich Argentino”, seja num envolvimento mais direto e brutal, exposto por exemplo no último dos biografados, o infame poeta chileno Carlos Ramírez Hoffman, cuja “passagem pela literatura deixa um rastro de sangue”, num momento da história chilena de ascensão do fascismo pós-golpe de 1973, marcado por torturas e desaparecimentos.

O mérito do livro de Roberto Bolaño é contar todas essas histórias de cumplicidade e colaboracionismo com a barbárie situando-as em ambientes de “agradável” refinamento artístico e intelectual. A maioria das personagens faz parte das elites locais e transitam entre literatos, intelectuais e artistas de modo geral. Expõe, desse modo, as entranhas apodrecidas da arte na sua íntima relação com o poder.

“A literatura nazista na América” é um trabalho de ficção. Tenho uma tese a respeito do livro, que já pode ter sido sugerida por especialistas, ou pelo contrário, não encontra nenhum respaldo entre esses. O livro é uma espécie de deferência incômoda a Jorge Luis Borges. Explico: muitos dos recursos literários e de estilo que fizeram de Borges um dos maiores escritores do século XX estão presentes neste livro de Bolaño, isto é, a paixão pelo universo dos livros, o uso de uma narrativa labiríntica, os contos curtos, o formato excessivamente enciclopédico, a invenção fabulosa de títulos bibliográficos que funcionam nas histórias como pontos de partida da narrativa e também como testemunhos do elo entre personagens e fatos. Borges, aliás, é literalmente citado no livro, mas não como personagem biografado. Em rápida pesquisa fico sabendo que o autor chileno é de fato discípulo declarado do escritor argentino, sendo tratado por alguns críticos de “Borges com vísceras”.

E por que tal suposta homenagem seria incômoda? Porque sabemos também, assim como as personagens do livro, que a biografia de Jorge Luis Borges tem os seus momentos de infâmia, de apoio a ditadores latino-americanos, como Videla e Pinochet: Agradeço ao Chile haver mostrado à Argentina como se luta contra o comunismo, porque elegeu a branca espada antes do que a furtiva dinamite. Vale a leitura.

[publicado originalmente em 29 de fevereiro de 2020]


Título original: La literatura nazi en America
Tradução: Rosa Freire d’Aguiar
Páginas: 240
Formato: 14.00 X 21.00 cm
Peso: 0.301 kg
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 14/03/2019
ISBN: 9788535932065
Selo: Companhia das Letras

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